O CRIME
Para Atena, de Olhos Brilhantes...
"Em Outubro deste ano, guindastes sofisticadíssimos e da mais apurada tecnologia subiram muito acima dos 10 metros e 43 centímetros das colunas dóricas do Parténon, para arrancar do friso da face norte do templo um bloco de mármore de 2,3 toneladas. Cerca de 2500 anos depois de ter sido colocado, esse bloco foi levado pelos ares para aterrar no novo Museu da Acrópole, a inaugurar em 2008.
O saque vai continuar nas próximas 5 semanas, até que todas as esculturas dos frisos e das métopas do Parténon, bem como outros elementos decorativos, sigam o mesmo destino. Serão cerca de 4000, tudo o que de Fídias, ou dos seus díscipulos, se conservava ainda na obra suprema do seu criador. Quem viu o Parténon até Setembro de 2007 nunca mais o verá igual. Verá as 17 colunas dóricas do períptero, mas das figurações da Gigantomaquia, da Amazonomaquia e da Guerra de Tróia nada restará nos tríglifos e nas métopas. Tão despido, tão saqueado, ao longo dos seus 2500 anos de existência, o Parténon, no mês em que, antigamente, as virgens ao sol poente se prostravam diante de Atena Parténos (Atena, a Virgem) e de Hefestos, ficará finalmente nu, talvez rodeado por uma teia tão invisível, mas tão impenetrável, quanto aquela em que o mesmo Hefestos aprisionou os adúlteros Afrodite e Ares, para gáudio dos outros deuses e vingança própria.
E, tal como todos os deuses do Olimpo, ao que consta, vieram junto do leito de Afrodite para admirar a dúplice façanha, ministros, embaixadores, arqueólogos, arquitectos e uma multidão incontável se reuniram agora, cerca de 300 metros mais abaixo, para admirar a ascensão e descida do mármore pentélico em que Renan viu cristalizado o ideal grego. Não me disseram de que métopas se tratou. Seria aquela em que Menelau reencontra Helena? Ou a da fuga de Eneias sob a protecção de Afrodite? Tanto não me disseram, mas parece que todos igualavam em júbilo as Panateneias, enquanto os corpos jónicos eram transladados para um museu, de vidro e betão, concebido para ser transparente. Durou tudo uma hora e meia, uma terrível hora e meia.
Como o ministro da cultura grega aproveitou para sublinhar, pela primeira vez os mármores saíam “legalmente” do Parténon. Por decisão de um governo legítimo, após estudos que demoraram décadas, deixando de estar expostos ao irreparável ultraje do tempo, às frias ventanias de Inverno, ou à insuportável canícula do Verão. Ficarão, agora, abrigadinhos, num museu com a climatização devida, onde poderão continuar a ser admirados pelos turistas, agora muito mais próximos do olhar deles, que pouco enxergavam na Acrópole de estátuas corroídas e longínquas, tantos, tantos metros acima da cabeça deles. Os deuses, ou o que dos deuses resta, desceram à terra e poderemos vê-los em campo-contracampo, à altura do nosso olhar.
Saques foram os outros de que reza a história. O perpetrado pelos cristãos, mil anos depois de Péricles, quando transformaram o templo em igreja cristã e de lá levaram, para a despedaçar, a estátua criso-elefantina de Atena, obra-prima de Fídias, de que hoje só podemos fazer uma pálida ideia por reproduções discutivelmente aproximativas. Aquele, comparativamente menos bárbaro, que os turcos cometeram em 1458, quando transformaram a igreja em mesquita, com minarete e tudo. Saque muito mais violento foi o de 1687, quando os turcos em guerra com os venezianos, lá instalaram um paiol de pólvora que as armas da Sereníssima fizeram ir pelos ares, destruindo completamente o centro e a cobertura do edifício, que, apesar de tudo, haviam resistido cerca de 2000 anos. Saque, finalmente, foi o que o sétimo conde de Elgin, Thomas Bruce, mandou fazer, com a autorização do governo turco, que à época dominava a Grécia, quando removeu do Parténon grande parte dos mármores das fachadas sul e oriental, entre 1801 e 1803, para os levar para Londres, onde, hoje, são a maior glória do British Museum, operação “legalizada” por uma venda draconiana em 1816.
Porque falo então de saque ou de novo saque? Porque, por melhores que sejam os argumentos dos preservadores (…) o imenso fascínio do Parténon (é muito mais que fascínio) é inseparável, para nós, que nunca o vimos como foi concebido e como terá existido entre o século V a.C. e o século V d.C., do que dele subsistiu. As colunas recortadas contra o céu continuam a criar, como foi querido que criassem, na sua imperceptível reentrância (o que os gregos chamavam entasis), a ilusão de um volume que é mais piramidal do que paralelepipédico. Mas, como tudo foi concebido em função daquele espaço, daquele mar, daquele céu, daquelas cores, daquela altura, toda a deslocação desloca também o sentido. Acredito piamente que, num museu, as estátuas que subsistiram subsistam por muitos mais anos do que se continuassem ao “ar livre”. Só que elas são inseparáveis do ar livre. Quando não há outro remédio (e isso sucede para a maioria da estatuária grega) a beleza continua a existir, mas a perda não a podemos medir. Quando o monumento radical subsiste, como é o caso do Parténon, sacrificar-lhe o todo em função da salvaguarda das partes (…) parece-me um saque, no sentido próprio da palavra. Roubarem ao Todo o que só Todo é, mesmo que desse Todo só parte haja subsistido.
Por isso, neste ano em que são roubados ao Parténon os últimos elementos que nele restavam do que foi parte integrante dele, penso e sinto que assistimos a um novo saque, com a boa consciência de quem não está a destruir mas a salvar, que talvez seja pior do que o acto de destruição (...).”
E, tal como todos os deuses do Olimpo, ao que consta, vieram junto do leito de Afrodite para admirar a dúplice façanha, ministros, embaixadores, arqueólogos, arquitectos e uma multidão incontável se reuniram agora, cerca de 300 metros mais abaixo, para admirar a ascensão e descida do mármore pentélico em que Renan viu cristalizado o ideal grego. Não me disseram de que métopas se tratou. Seria aquela em que Menelau reencontra Helena? Ou a da fuga de Eneias sob a protecção de Afrodite? Tanto não me disseram, mas parece que todos igualavam em júbilo as Panateneias, enquanto os corpos jónicos eram transladados para um museu, de vidro e betão, concebido para ser transparente. Durou tudo uma hora e meia, uma terrível hora e meia.
Como o ministro da cultura grega aproveitou para sublinhar, pela primeira vez os mármores saíam “legalmente” do Parténon. Por decisão de um governo legítimo, após estudos que demoraram décadas, deixando de estar expostos ao irreparável ultraje do tempo, às frias ventanias de Inverno, ou à insuportável canícula do Verão. Ficarão, agora, abrigadinhos, num museu com a climatização devida, onde poderão continuar a ser admirados pelos turistas, agora muito mais próximos do olhar deles, que pouco enxergavam na Acrópole de estátuas corroídas e longínquas, tantos, tantos metros acima da cabeça deles. Os deuses, ou o que dos deuses resta, desceram à terra e poderemos vê-los em campo-contracampo, à altura do nosso olhar.
Saques foram os outros de que reza a história. O perpetrado pelos cristãos, mil anos depois de Péricles, quando transformaram o templo em igreja cristã e de lá levaram, para a despedaçar, a estátua criso-elefantina de Atena, obra-prima de Fídias, de que hoje só podemos fazer uma pálida ideia por reproduções discutivelmente aproximativas. Aquele, comparativamente menos bárbaro, que os turcos cometeram em 1458, quando transformaram a igreja em mesquita, com minarete e tudo. Saque muito mais violento foi o de 1687, quando os turcos em guerra com os venezianos, lá instalaram um paiol de pólvora que as armas da Sereníssima fizeram ir pelos ares, destruindo completamente o centro e a cobertura do edifício, que, apesar de tudo, haviam resistido cerca de 2000 anos. Saque, finalmente, foi o que o sétimo conde de Elgin, Thomas Bruce, mandou fazer, com a autorização do governo turco, que à época dominava a Grécia, quando removeu do Parténon grande parte dos mármores das fachadas sul e oriental, entre 1801 e 1803, para os levar para Londres, onde, hoje, são a maior glória do British Museum, operação “legalizada” por uma venda draconiana em 1816.
Porque falo então de saque ou de novo saque? Porque, por melhores que sejam os argumentos dos preservadores (…) o imenso fascínio do Parténon (é muito mais que fascínio) é inseparável, para nós, que nunca o vimos como foi concebido e como terá existido entre o século V a.C. e o século V d.C., do que dele subsistiu. As colunas recortadas contra o céu continuam a criar, como foi querido que criassem, na sua imperceptível reentrância (o que os gregos chamavam entasis), a ilusão de um volume que é mais piramidal do que paralelepipédico. Mas, como tudo foi concebido em função daquele espaço, daquele mar, daquele céu, daquelas cores, daquela altura, toda a deslocação desloca também o sentido. Acredito piamente que, num museu, as estátuas que subsistiram subsistam por muitos mais anos do que se continuassem ao “ar livre”. Só que elas são inseparáveis do ar livre. Quando não há outro remédio (e isso sucede para a maioria da estatuária grega) a beleza continua a existir, mas a perda não a podemos medir. Quando o monumento radical subsiste, como é o caso do Parténon, sacrificar-lhe o todo em função da salvaguarda das partes (…) parece-me um saque, no sentido próprio da palavra. Roubarem ao Todo o que só Todo é, mesmo que desse Todo só parte haja subsistido.
Por isso, neste ano em que são roubados ao Parténon os últimos elementos que nele restavam do que foi parte integrante dele, penso e sinto que assistimos a um novo saque, com a boa consciência de quem não está a destruir mas a salvar, que talvez seja pior do que o acto de destruição (...).”
Excertos de "O Novo Saque do Parténon" de João Bénard da Costa, in Público (P2) 21/10/07
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